«ELIAS JABBOUR* - OCIDENTE "NÃO TEM MORAL" PARA CRITICAR A CHINA
Por Diego Salmen, para o Terra Magazine
O mundo ocidental está desmoralizado para criticar os chineses, afirma Elias Jabbour, em entrevista publicada nesta sexta-feira pela revista eletrônica Terra Magazine, que o Vermelho reproduz abaixo.
Terra Magazine - Qual a importância dos Jogos Olímpicos para a China hoje? Eles podem contribuir para a democratização do país?
Elias Jabbour * - Para o brasileiro fica complicada falar em nação porque nós tivemos o processo de construção de identidade nacional iniciado em 1930 com Getúlio Vargas e abortado com a eleição do Collor em 1990. Tanto é que falar em nacionalismo uns tempos atrás pegava mal. Enquanto os chineses têm um processo de construção nacional de cinco mil anos, eles são muito nacionalistas. As Olimpíadas representam o seguinte para os chineses: "nós investimos, somos fortes e temos voz no mundo". Eles passaram 100 anos humilhados pelo mundo, então esse é um momento onde a China quer escancarar para o mundo o seu potencial. Mas, ao mesmo tempo, o mundo também escancara seu potencial contra a China. Eu acredito que isso não acelera a liberalização. Uma coisa é uma coisa é outra coisa é outra coisa.
Como definir a China de hoje?
A China é um país socialista, porque mantém o controle estatal no que é estratégico nas cadeias produtivas, ou seja, siderurgia, comunicações, infra-estrutura, energia. O estado toma conta do que tem grande grau de monopólio. E esse Estado tem uma composição de classes no poder que é totalmente diferente de qualquer país capitalista. Na China não há capitalistas no poder, vamos dizer assim. O Partido Comunista na China representa os interesses sobretudo de uma classe camponesa, que é mais de 60% da população do país. Por outro lado, o que caracteriza esse partido , além marxismo e essa coisa toda, é o cárater nacional desse partido. É um partido nacionalista. Ele abarca no seu programa tanto os interesses gerais da nação chinesa quanto a questão ideológica do socialismo, comunismo, etc.
Esse modelo de centralização política e liberalização econômica é responsável pela China ter tido um destino diferente da União Soviética?
Não, é diferente. A perestroika (NR: processo de reformas econômicas iniciado na década de 80 que resultou na dissolução da União Soviética em 1992) é uma volta atrás completa, de uma certa forma. Na China não. Primeiro porque a gente falar em ditadura política e liberalização econômica é meio complicado, porque há uma série de coisas que aconteceram nos últimos 30 anos que ninguém fala, né? Uma delas é poder entrar capitalistas no partido, a questão de acabar essa coisa de um líder ficar 50 anos no poder, como ficava antes. Hoje você tem gerações dirigentes de 10 anos, e com 70 anos de idade aquele cara que manda vai para a aposentadoria. Politicamente, muita coisa aconteceu. A Internet hoje é um instrumento de denúncia de corrupção na China que vem sendo utilizado pelo governo. O premiê Wen Jiabao pediu: "Pelo amor de Deus, acessem a internet e denunciem a corrupção aqui para nós".
Mas há a questão da censura...
É o seguinte: o país que mais controla a internet no mundo são os Estados Unidos, não a China. Hoje qualquer conteúdo de internet nos Estados Unidos é vigiado, muito conteúdo não é publicado e ninguém fala isso. Outra coisa: os americanos cassaram, no ano passado, 46 concessões de TV. A Venezuela cassou uma e foi aquela coisa que todo mundo viu. O ocidente, do ponto de vista da democratização e dos direitos humanos, está desmoralizado. Um país como a Inglaterra, que fez uma guerra contra a China para legalizar o consumo de drogas (NR: a chamada Guerra do Ópio, travada no século 19) , pode falar alguma coisa de direitos humanos para a China? A premiê alemã Angela Merkel disse que iria boicotar a abertura dos Jogos Olímpicos por causa da questão do Tibete; a Alemanha tem alguma moral para falar da China? Os imperadores alemães mandaram matar tudo quanto é chinês na ocupação da China no século passado. A história nos demonstra muitas verdades. O Ocidente é desmoralizado para dar lição de democracia para a China.
Se diz que na China o poder está nas mãos dos trabalhadores, mas há milhares de empresários, capitalistas, filiados ao Partido Comunista. A filiação de empresários é algo já institucionalizado no partido. O que garante que os empresários, sob essa óptica marxista, não vão assumir a hegemonia do partido e reverter essa situação? Não é contraditório?
A contradição é em termos, vamos dizer assim. O Partido Comunista da China expressa os interesses de toda a nação, e os capitalistas são parte dessa nação. A questão é a seguinte: os capitalistas têm poder ou não na China? Não tem poder, porque hoje eles são 0,003% do partido. Esse é um dado, e tem o outro lado da questão: esses empresários são resultado de que tipo de política e de qual tipo de partido? São resultado do Partido Comunista e tem de estar de acordo com esse partido. Não existe, no plano imediato - não vou falar do futuro porque não sou profeta (risos) -, a menor tendência de reversão de quadro, dos capitalistas terem poder. Esse partido tem condições de manter os capitalistas e o povo satisfeitos. De certa forma, os interesses deles são os mesmos, porque os capitalistas têm capacidade de empreendimento, que gera emprego, etc. Foi uma sacada política genial ter colocado os capitalistas debaixo desse guarda-chuva do Partido Comunista.
O que se dá com uma mão, tira com a outra...
Com certeza. Os capitalistas não têm grande poder de manobra naquele país, não tem uma política concreta. (a capacidade política dos empresários) É fraca. O que eles precisam? Eles precisam de crédito, ir no banco chinês, pegar um empréstimo rápido e fazer com que as coisas funcionem. É muito complicado para eles virar internamente o poder no Partido Comunista.
Uma parte da esquerda diz que na China não há o menor resquício de socialismo; outra acredita que o país está sob um processo de desenvolvimento de forças produtivas para, numa segunda etapa, dar um passo à frente rumo ao socialismo. Como o senhor analisa esses quadros distintos?
A primeira questão que tem se colocar é que o socialismo não é pobreza. Desde os clássicos, Marx, Engels, Lênin, o socialismo se desenvolve por etapas. Numa fase inicial é prevista a convivência entre público e privado, entre mercado e planejamento, ou seja, não é nenhuma surpresa o "socialismo de mercado" e a convivência de capitalistas num sistema socialista. O mercado foi uma conquista da humanidade. Até hoje ninguém inventou uma coisa melhor para distribuir produtos. Por outro lado, ele gera alienação. Ele só acaba com duas condições: objectivas, ou seja, tem que ter tudo para todo mundo, porque o mercado existe para mediar a escassez. Eu coloco em dúvida se o mercado vai acabar ainda, o Antônio Gramsci (NR: filósofo e fundador do Partido Comunista italiano) também coloca isso. É um falsa polêmica essa entre mercado e socialismo.
Por quê?
É uma categoria histórica. É igual falar que vai fazer o socialismo num país esclavagista, não tem cabimento. Tem que passar por etapas de desenvolvimento histórico para aquilo ser superado. O próprio desenvolvimento vira um dilema, porque o socialismo foi concebido para ser implementado no países mais desenvolvidos, onde há uma série de problemas que já foram solucionados pela Revolução Burguesa, como analfabetismo, reforma agrária, a industrialização. Isso não é tarefa do socialismo, é do capitalismo. Aí o socialismo teria que atender essa demanda das revoluções burguesas.
No seu livro China: Infra-estruturas e Crescimento Econômico, o senhor fala das Zonas Econômicas Especiais. Como elas funcionam? Qual a importância delas para a economia chinesa?
A China é uma reprodução em tamanho gigante dos modelos japoneses e sul-coreano. Eu costumo dizer que em 1978 (NR: ano em que o ex-líder chinês Deng Xiaoping iniciou as reformas econômicas no país) há uma fusão, entre o Estado revolucionário fundado por Mao Tsé-Tung com um modelo de Estado desenvolvimentista típico do sudeste asiático, de Hong Kong, Coreia do Sul, Taiwan. Essa política tem por objetivo acumular divisas para a modernização industrial do país. Com o acúmulo de divisas estrangeiras e a proteção de reservas cambiais, fica mais fácil ter uma política de juros atraente para o crédito. Hoje você compra um carro na China em 300 vezes, vamos dizer assim. Isso serve como plataforma de acúmulo de reservas cambiais e, por outro lado, como plataforma de acúmulo de tecnologia estrangeira.
Por meio de joint-ventures...
Exactamente. Tem ainda a questão política. As Zonas Econômicas Especiais foram centrais no retorno de Hong Kong e Macau a China. E no próprio retorno de Taiwan a China, porque você cria zonas de convergência econômica em que o capital de Taiwan e o chinês acabam ficando dependentes da China continental. Fica difícil você manter um discurso de independência quando o próprio povo de Taiwan depende do continente. Elas foram geograficamente criadas para puxar o capital de fora da China.
Na TV nós vemos uma China pujante, que não pára de crescer. Mas ainda existe uma enorme população rural que vive na miséria. O que é feito para combater esse problema? Existe, por exemplo, alguma rede de proteção social na China?
Primeiro: essa estratégia de desenvolver primeiro o litoral para depois desenvolver o interior do país foi uma grande jogada. Durante 25 anos a China acumulou capital e tecnologia no litoral; de 1999 para cá eles estão transferindo para o interior essa riqueza e extraindo de lá gás natural, petróleo, minérios. O que está acontecendo na China hoje talvez seja a maior transferência territorial de renda da história da humanidade.
E isso só é possível porque existe um governo centralizado...
Exactamente. Todo esse processo de desigualdade social está sendo abordado neste governo do presidente Hu Jintao. Daqui a 40 anos, a China vai ser um território econômico único, não vai haver mais esses bolsões de miséria e riqueza como existe hoje. Particularmente, eu acredito que a formação dessa economia continental vai ser o grande paradigma das relações internacionais do século XXI. Imagine a China daqui a 40 anos unificada territorialmente? Imagine os Estados Unidos há 150 anos quando unificaram economicamente seu território com a Marcha para o Oeste?
E a gente não pode ver o desenvolvimento econômico por si só como um mar de rosas. O desenvolvimento é um processo de solução de contradições que gera outras contradições. A China tem contradições muito sérias: a questão da desigualdade de renda, por exemplo. A principal missão do governo Hu Jintao é essa: diminuir esse gap entre o litoral e o interior e o gap de renda entre ricos e pobres. Para isso, eles estão investindo bilhões de dólares em assistência social. Antes não existia isso. A assistência social entrou em colapso no início das reformas econômicas, e agora estão investindo mais de US$ 200 bilhões na viabilização de uma política pública com aposentadoria, serviço de saúde, etc.
Existe alguma tendência de democratização na China?
Temos de analisar os processos da Coréia e do Japão, por exemplo. Foram países que se democratizaram concomitantemente ao desenvolvimento econômico. A China passa por um processo um tanto quanto acelerado de democratização interna. Hoje a China dá muita atenção às eleições nas aldeias, esse é o primeiro passo na direção da democracia: hoje as aldeias já elegem seus próprios representantes, independente de serem ou não do Partido Comunista. Isso de certa forma é a retomada da democracia milenar chinesa nas aldeias. Há três, quatro mil anos atrás existia nas aldeias chinesas um rito democrático que está sendo retomado hoje. Esse processo de democratização vai se dar com a hegemonia do Partido Comunista. Na medida em que ele atender os interesses dos camponeses, garantir crédito aos capitalistas, ele vai capitanear esse processo sem grandes traumas. No ritmo chinês, não no ritmo que os ocidentais querem. Até porque democracia é questão de formação social, não é um valor universal, é um valor que se adequa às diferentes formações sociais.
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* Autor do livro China: Infra-estruturas e Crescimento Econômico, Jabbour é pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos da China, Ásia e Pacífico (IBECAP) e professor do Núcleo de Estudos Asiáticos (NEAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente, desenvolve tese de doutorado sobre a economia política do socialismo na China pela Universidade de São Paulo»