quarta-feira, abril 21, 2004

GUERRILHEIROS DAS PALAVRAS - III

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"Considero-me legítimo herdeiro de Edmundo Bettencourt e de Menano, que são os homens do fado de Coimbra. Toda a grande música que se faz hoje e que está preocupada em não abandonar a matriz da música tradicional começou em Coimbra, dentro das universidades. A que nasceu fora das universidades desembocou numa desgraça, mas isso é outra coisa, é música de feira". O autor destas palavras é Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias, nascido em Novembro de 1948 em pleno Oceano Atlântico, a bordo do navio Pátria que navegava entre Portugal e Angola.
Fausto, por muitos considerado o mais importante compositor vivo da música popular portuguesa, teve um início de carreira recheado de indecisões. Estudante do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), é em plena vida académica que grava o primeiro 45 rotações, a que se segue o álbum homónimo, Fausto.
Em declarações proferidas à revista Flama em 1970, Fausto hesita ainda na continuidade do trabalho musical: "nunca acreditei muito na minha voz, nem ainda hoje acredito. Já pensei várias vezes na data em que vou largar "isto". (...) Dizem-me que devo continuar, mas não sei bem se será até no próximo mês de Junho que porei o ponto final. Depois, cantarei apenas para os amigos e para mim próprio".
A realidade dos factos (e dos anos entretanto passados) encarregou-se de desfazer as dúvidas do então jovem estudante. Eleito presidente da direcção da Associação dos Estudantes do ISCSPU, Fausto viu o seu nome não ser homologado no cargo pelo Ministério da Educação, em consequência de um certo comprometimento político da sua actividade musical. E, como castigo, é chamado a cumprir o serviço militar, embora possuísse todas as condições para ter um adiamento. Em resultado, Fausto recusa-se a comparecer no quartel e é considerado refractário.
Vivendo quase clandestino, Fausto faz grande parte das gravações do seu segundo LP, P'ró Que Der e Vier, em Madrid. Nele, inclui letras de Eugênio de Andrade e Mário Henrique Leiria, num todo de características políticas muito acentuadas.
Com o 25 de Abril, Fausto acompanha a actividade frenética dos cantores de resistência ao regime deposto. É arranjador e produtor em Coro dos Tribunais (1974), Enquanto Há Força (1978) e Como se Fora seu Filho (1983), de José Afonso, em Que Nunca Mais (1975) e Cantigas Portuguesas (1980), de Adriano Correia de Oliveira.
É um dos fundadores do Colectivo de Acção Cultural - CAC, com os artistas já referidos e José Mário Branco, Luís Cília, Tino Flores e outros. E, em 1975, edita o seu segundo LP, Um Beco Com Saída.
Após o período mais quente da revolução, Fausto assiste ao que considera ser uma invasão do nosso país pela música anglo-saxónica. Reage: "sempre me opus e resisti à tirania do rock e do pop em Portugal pelo que isso representa de normalização da música". E dá a sua própria resposta, gravando em 1977 Madrugada dos Trapeiros, um dos discos fundadores da nova música popular portuguesa.
A sua crescente importância no panorama musical da época mede-se pelo convite inédito feito por José Afonso para comporem em conjunto, de que resultam os temas A Acupunctura em Odemira e Eu, o Povo. Por essa altura, Fausto começa a interessar-se pela temática dos descobrimentos portugueses. O seu álbum Histórias de Viageiros (1979) é o primeiro reflexo deste novo rumo na obra do autor. Uma espécie de prefácio do grande momento da sua obra, Por Este Rio Acima.
Em Por Este Rio Acima (1982), e a partir das crónicas de Fernão Mendes Pinto, o principal cronista dos descobrimentos, Fausto traça um retrato da sociedade portuguesa, procurando os pontos de confluência entre a época das naus e caravelas e os dias de hoje.
A esse propósito, o autor afirma: "Canto o lado do povo anónimo que ia nos barcos, não o dos heróis. Canto o outro lado da História, o lado mais humano. Não falo do passado. Falo da actualidade e curiosamente há pontos em comum".
O disco, duplo, conhece um êxito sem precedentes na carreira do autor e dá origem a um novo ciclo da música popular portuguesa. Houve quem dissesse, acerca de Por Este Rio Acima, que era impossível o autor voltar a fazer melhor. Fausto não se conforma: "Habituei-me à presença incómoda dessa obra. Mas acuso o espírito conservador dessas pessoas. Quem nos amarra não é mais que uma geração, as outras descobrem coisas novas".
Convidado pela editora a prosseguir o tema, Fausto impõe um período de trabalho de dez anos entre cada registo da trilogia da diáspora marítima portuguesa. Na realidade, entre Por Este Rio Acima e Crónicas da Terra Ardente (1994) distam doze anos.
Em 1985 editará O Despertar dos Alquimistas, grande painel sonoro onde é central o tema da realidade e da utopia. Dois anos depois, com Para Além das Cordilheiras, Fausto percorre uma estrada musical entre Lisboa e Berlim, numa viagem simbólica do regresso de Portugal à Europa. Com A Preto e Branco (1989), as canções africanas da sua adolescência são de novo interpretadas, num reencontro com a música angolana.
Em 1996, Fausto sintetizou, numa antologia, os temas fundamentais da sua obra. No álbum duplo Atrás dos Tempos Vêm Tempos, 27 das suas principais canções são apresentadas ao público regravadas e rearranjadas, com a colaboração de músicos da nova geração. O público reagiu positivamente e o álbum atingiu vendas superiores a 20 mil exemplares, sendo Disco de Ouro.
O país reconhece, em 1997, a importância de Fausto, através da Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses, que o convida para dar um concerto comemorativo dos 500 anos da partida de Vasco da Gama para a India, a 8 de Julho desse ano.

Extraído daqui


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